sábado, 30 de janeiro de 2010

O sinestésico

Tato, como o próprio nome anunciava, era um rapaz cheio de dedos. Talvez por isso tenha sentido um frio na espinha antes de comunicar à família que ia largar tudo para estudar anatomia. O pai disse que assim ele ia trocar os pés pelas mãos. A mãe também colocou uma pulga atrás da sua orelha quando perguntou o que o levaria a abandonar o trabalho de digitação, a profissão perfeita para ele.

Mas Tato botou na cabeça que queria conhecer cada parte do corpo humano e pela primeira vez iria olhar só para o próprio umbigo. Ah, e a família não teria que meter o nariz onde não era chamada.

Estava decidido a nunca mais ser o testa de ferro daquele chefe que era um chute no saco. Vivia carregando a empresa nas costas e pesava em seus ombros a responsabilidade de entregar todo trabalho com ele fungando em seu cangote.

Tudo aquilo o embrulhava o estômago e já há algum tempo empurrava aquela situação com a barriga. Mas havia chegado a hora de dar um pé na bunda do chefe pentelho e agarrar com unhas e dentes a faculdade de Anatomia. Foi de peito aberto fazer o que seu coração mandava.

Mesmo sabendo que a mensalidade custava os olhos da cara, fez a matrícula. “Pode ter sido um passo maior que a perna”, pensou. Mas, logo em seguida, lembrou o dito popular que sempre ouvia do antigo chefe: Ajoelhou tem que rezar. Além de rezar, só havia um jeito de pagar a conta: fechar a mão

Controlou o bolso com pulso forte. Os estudos também. Era o crânio da faculdade. Mas uma matéria cabeluda era o seu calcanhar-de-aquiles. Precisava que os amigos dessem uma mãozinha. E foi assim que conheceu Geysa, a menina da minissaia, que compartilhava tudo o que sabia sobre o corpo humano.

Com ela, mesmo se ele tivesse entendido a matéria, dava uma de joão-sem- braço, só para ficar escutando aquela mulher que falava pelos cotovelos. Ele, apaixonado, ficava quieto, com um nó na garganta, sem conseguir se declarar. E se ela virasse a cara?

Só que o povo tem a língua maior que a boca e começou a falar mal da Geysa. Dizia que ela fazia a faculdade nas coxas e que não era companhia para Tato. Mas ele não deu ouvidos. Tomou coragem e entrou de sola naquela relação, que era muito mais do que uma coisa de pele.

Com a menina da minissaia, Tato finalmente conhecia todas, mas todas as partes do corpo humano. Enquanto isso, Geysa lavava sua alma.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Insônia

A insônia existe. É só ficar acordado de madrugada que você vai conhecê-la. Mas já adianto: ela só não é um verdadeiro pesadelo, porque obviamente você não está dormindo. É claro, existem várias maneiras de você vencer a insônia à noite e o sono de dia . Ir morar no Japão é uma saída. O fuso horário de 12 horas em relação ao Brasil vai fazer você se sentir um ser normal. Isso funcionaria se a indústria da insônia não fosse uma organização tão aparelhada.

Eles estão unidos. O seu vizinho, por exemplo. Por que você acha que ele dá as festas até altas horas ao som de “Macarena”? Você acredita que alguém ache mesmo divertido dançar “Macarena”? Acorde para vida! Ele é um agente dessa indústria. E seus convidados também. Tudo para perturbar seu descanso.

Quando acaba a festa, você acha que vai relaxar vendo um filmezinho para, enfim, pegar no sono. Sonho seu! A Rede Globo também está envolvida na máfia e anuncia o Intercine dando duas opções de filmes: Adoradores do diabo ou Terror na montanha! Assim, quem consegue dormir?

A máquina funciona dessa maneira: com insônia você acaba se associando a um plano de saúde (pois é, os planos também são parte da engrenagem) e procura um médico. Ele diz que é apenas estresse, e manda você fazer análise. O analista indica um livro de auto-ajuda. Os livros de auto-ajuda levam você a assistir a palestras de auto-ajuda. Logo, logo, os participantes querem se mostrar amigos sensíveis e vão começar a mandar e-mails “Para refletir”, tudo em arquivos PPS gigantes. E quando você perceber, está passando a madrugada inteira lendo e enviando os PPS “lindos COM SOM”.

Lembre-se: a máfia não dorme em serviço. Ela sabe que, quanto mais tempo acordado, você consome mais, alimentando assim os interesses dessa ideologia neoliberal selvagem. Então, fiquemos atentos na nossa vigília, porque se cochilarmos, nunca mais vamos dormir.

PS: se você dormiu antes de chegar ao fim do texto, quer dizer que estamos no caminho certo.